Uma crise civilizatória de longo alcance

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Publicado Terça, 27 de Setembro de 2022 às 06:19, por: CdB

Como vêm alertando vários dos nossos movimentos, além de muitos intelectuais orgânicos, estamos atravessando uma crise estrutural mundial do sistema capitalista. Uma crise cujos resultados ainda são imprevisíveis, tanto para a esfera regional quanto global.

Por Manuel Bertoldi – de Brasília

O artigo a seguir é uma sistematização, ainda que parcial e inacabada, de um processo de debates e reflexões dentro da nossa articulação continental, ALBA Movimentos. O mesmo contribuiu para o diálogo sobre a situação internacional em nossa última reunião da Assembleia Internacional dos Povos. São observações realizadas a partir da realidade cotidiana vivida por nossas organizações e povos em um mundo absolutamente conturbado e com um futuro bastante incerto.
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A Argentina é hoje o principal alvo na América do Sul da guerra híbrida do imperialismo

Uma crise civilizatória de longo alcance

Como vêm alertando vários dos nossos movimentos, além de muitos intelectuais orgânicos, estamos atravessando uma crise estrutural mundial do sistema capitalista. Uma crise cujos resultados ainda são imprevisíveis, tanto para a esfera regional quanto global. É importante ressaltar que, ao contrário do que sugerem as visões liberais e até certa heterodoxia, essa crise é produto da própria evolução do capitalismo (em sua fase neoliberal). Em outras palavras, a crise é produto do desenvolvimento intrínseco do capital e não um problema exógeno ao "funcionamento normal do sistema". É o próprio desenvolvimento do capital que engendra todas as contradições que, aguçadas, devêm em crise. No entanto, o desenvolvimento da crise não afeta o conjunto da população da mesma forma. São os nossos povos que estão sujeitos às desastrosas consequências, tanto econômicas, quanto sociais e políticas, da crise. Nunca na história da humanidade o grau de desigualdade foi tão agudo como hoje. A riqueza obscena concentrada em um pequeno polo da população mundial contrasta dramaticamente com a miséria a que estão submetidas milhões de pessoas. É nesse contexto que hoje ocorrem no mundo todo manifestações turbulentas de instabilidade política. Acontece que não pode haver estabilidade política sem estabilidade social; ao passo que é impossível alcançar estabilidade social sem estabilidade econômica para as maiorias populares. No entanto, nesse cenário conflituoso, é prudente lembrar que o capitalismo (e mais ainda o neoliberalismo como fase específica da acumulação capitalista) sempre usou as crises para impor suas próprias transformações políticas.

Um novo cenário de uma guerra global em formação

Vivemos em um cenário bélico que se internacionaliza e se intensifica desenfreadamente. Nos últimos anos, as grandes empresas armamentistas, verdadeiros mercadores da morte, vêm aumentando suas vendas. Essa situação teve um salto exponencial a partir da pandemia, quando as principais potências globais aumentaram vertiginosamente seus orçamentos para a indústria militar. Tanto é assim que, em meio à crise global da covid-19, segundo estudos do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), foi alcançado um recorde histórico de US$ 2,11 trilhões em gastos com guerras. Uma imagem que ilustra o espírito do capital: enquanto milhões de seres humanos morriam por falta de atendimento médico, as principais potências usavam seus recursos no negócio da guerra. Finalmente, essa escalada levou à atual guerra na Ucrânia (que já dura mais de seis meses). A isso se somou a recente escalada de tensões em Taiwan, com a viagem da presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, à ilha. Para além dos adversários e responsáveis de cada contexto, tudo isso expressa a geopolítica militarista implantada pelos EUA, que persegue o objetivo de reorganizar sua hegemonia global enfraquecida e ameaçada. Nesse cenário, é importante analisar a situação particular da América Latina e do Caribe em relação à disputa geopolítica internacional. Atualmente, a China é o segundo maior parceiro comercial de quase toda a América do Sul (com exceção da Colômbia e do Equador). E essa é uma tendência em alta. Prova disso é que, durante 2021, o fluxo comercial entre as duas partes superou 450 bilhões de dólares, marcando um aumento de 41,1% em relação ao ano anterior. Assim, as tensões entre EUA e China colocam a região como um terreno estratégico nas disputas hegemônicas globais.

Aprofundamento da crise energética devido à escassez e aumento dos preços dos combustíveis

Há anos, a produção de energia é um dos principais problemas mundiais, sendo também um dos recursos estratégicos das disputas geopolíticas. Vale lembrar que muito do que os Estados Unidos chamaram de "guerra contra o terrorismo", ao lado da OTAN e outros aliados, teve como uma de suas principais motivações a apropriação à força do petróleo que estava fora de suas fronteiras. No contexto atual, uma das consequências da guerra tem sido as dificuldades da Europa em abastecer seu consumo. Se tomarmos apenas o período abril/junho deste ano: o preço do barril de petróleo aumentou 12% e o do gás, 11%. Essa situação resultou, em primeiro lugar, em medidas governamentais de forte restrição ao consumo e, em segundo, em uma recuperação de fontes de produção altamente poluentes, como o carvão. Diante disso, o chefe do comitê de monitoramento da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol, declarou que a crise atual não só é pior do que a dos anos 70 e 80, como também vai durar muito mais tempo. Toda essa situação desencadeia um conjunto de fenômenos políticos, econômicos e ambientais com graves consequências. Para começar, o preço da energia tornou-se um novo vetor que estimula o processo inflacionário no mundo todo. E isso ocorre em um contexto já marcado pela maior inflação, em escala global, dos últimos 40 anos. Além disso, o aumento do preço da energia promove a exploração e aproveitamento do capital transnacional na busca por novas fontes de energia de hidrocarbonetos (off shore e não convencionais). E isso vem aumentando o interesse por novas fontes de energia renovável, assim como por projetos de investimento na região em tecnologias de hidrogênio verde, e um interesse particular pela reserva de lítio (50% em nível mundial) da Argentina, Bolívia e Chile.

Crise climática

Um dos aspectos centrais da atual crise sistêmica está ligado ao aprofundamento das causas da crise climática, cujos efeitos se espalham e se intensificam por todo o planeta. Todos os indicadores são alarmantes e existe um amplo consenso científico de que estão sendo ultrapassados limites que serão irreversíveis. Estamos testemunhando calor extremo, incêndios, secas e recordes de baixos níveis de água em rios. São fenômenos que vêm minando a realidade dos últimos meses. No entanto, é preciso lembrar que, mesmo antes da guerra, todos os mecanismos que tentavam mitigar as causas da crise climática já estavam em crise. O retumbante fracasso da COP-26 em 2021 foi um exemplo loquaz disso, a ponto de o presidente da conferência, Alok Sharma, chorar e se desculpar pelo ocorrido ao final da reunião, ao não chegar a consensos mínimos.

Crise alimentar

O impacto da crise climática, os efeitos da guerra e o boicote "ocidental" à Rússia produziram uma verdadeira crise alimentar para os povos do mundo. O preço mundial dos alimentos atingiu valores recordes, até superiores àquele marcado pelo ciclo especulativo de 2008 a 2012. A edição de 2022 do relatório "O estado da segurança alimentar e nutrição no mundo" (SOFI), elaborado pela FAO e outras organizações internacionais, constatou que: já em 2021, 828 milhões de pessoas passavam fome, o que significa que 9,8% da população mundial (em tendência crescente desde 2020) e 2,3 bilhões de pessoas estavam em insegurança alimentar grave ou leve (29,3% do total mundial); e em 2022 essa tendência se aprofundaria devido "à intensificação dos principais fatores de insegurança alimentar e desnutrição, a saber, conflitos, fenômenos climáticos extremos e choques econômicos, conjugados com o aumento das desigualdades".

Crise econômica

Todo esse cenário internacional tem como pano de fundo o agravamento da crise econômica em escala global, produto da crescente inflação derivada do aumento, no mundo todo, dos preços da energia, alimentos e metais. E essa alta de preços veio acompanhada de uma crescente recessão. A América Latina e o Caribe não estão alheios ao impacto dessa crise. O "Estudo econômico da América Latina e do Caribe 2022" alerta para "um panorama econômico complexo" tanto para este ano quanto para os próximos. Serão anos marcados por: menor crescimento econômico, fortes pressões inflacionárias (em junho a média regional foi mais que o dobro da registrada no período 2015-2019), baixo dinamismo na geração de empregos, queda no investimento e crescentes demandas sociais. Nesse contexto, a CEPAL reduziu suas projeções de crescimento, passando de 6,9% para 2,6% na América do Sul e de 5,7% para 2,5% na América Central e no México.

Instabilidade política

Uma das principais características da fase atual é a forte instabilidade política. Todos os projetos políticos estão em crise em nossa região. As correntes políticas neoliberais não conseguem construir cenários de estabilidade que lhes permitam concretizar seus programas. Enquanto isso, a chamada nova onda de governos progressistas vem se mostrando mais fraca e moderada do que aquela que marcou o continente no início do século. Nem o neoliberalismo consegue construir relações de força através das quais possa impor diretamente sua agenda, nem as forças populares encontram margens para ensaiar processos políticos que impliquem algum grau de "compromisso de classe" por meio do qual o ciclo de acumulação seja relançado. Nesse interregno de instabilidade política - que implica a deterioração das condições materiais das articulações do bloco hegemônico em conflito -, estão surgindo e ganhando força processos de radicalização política pela direita. Um fenômeno que se espalha cada vez mais em nosso continente e em todo o mundo.

Crise dos Estados liberais burgueses

Nos últimos anos temos visto uma deterioração persistente das instituições da democracia liberal burguesa e dos consensos democráticos que as sustentam. Essa deterioração não se traduz em um questionamento das graves limitações democráticas do Estado burguês, mas, ao contrário, muitas vezes é produto de um forte retrocesso antidemocrático. Vários fatores conjugados dão origem a essa crise que hoje atravessa boa parte das "democracias ocidentais". A crescente virulência da competição interburguesa, produto da crise, e sua falta de predisposição pelo "respeito democrático". O aumento exponencial do poder de várias corporações econômicas financeiras, midiáticas e até industriais, que deixam os Estados em uma posição de relativa debilidade em termos de sua "capacidade de controle". A persistente deterioração das condições de vida das maiorias populares, que não encontram meios de mitigar seu sofrimento no atual sistema político. A crescente instrumentalização do aparelho estatal - com destaque para o Judiciário - devido a disputas entre correntes políticas (como o lawfare). Entre outros fatores, elas articularam as condições dessa crise da qual se alimentam as novas direitas cada vez mais radicalizadas (pós-fascistas, alternativas etc.). Nesse cenário, e diante de uma possível vitória do Lula no Brasil, somada à recente vitória do Petro na Colômbia e à recuperação econômica (em meio à crise energética) da Venezuela, a Argentina é hoje o principal alvo na América do Sul da guerra híbrida do imperialismo.

Integração regional desacelerada

A integração regional na América Latina e no Caribe, estratégica para obter algum grau de autonomia, é um projeto que vem desacelerando no último período. A falta de lideranças e a falta de projetos com perspectiva de soberania em nível regional têm contribuído para essa estagnação. Exemplo disso é a Argentina, que recentemente entregou uma empresa nacional (Pluspetrol) de extração de lítio a uma empresa estrangeira, sem saber se houve avanços nos acordos em relação à questão tecnológica. Atualmente, não há um forte consenso, entre a liderança política tradicional, sobre uma perspectiva soberana e independente. Nesse contexto, o papel de integração dos movimentos populares é fundamental para fortalecer esse horizonte estratégico.

Crise das esquerdas

Nós, como esquerda, estamos passando por um momento de forte fragilidade no que diz respeito à elaboração de um projeto político, que se ancore e se construa a partir dos setores populares. Um projeto político que tenha a capacidade de irradiar por toda a sociedade de forma hegemônica e com um horizonte pós-capitalista. Para essa necessária e urgente reconstrução estratégica, é de vital importância a mobilização popular, a partir da qual é possível acumular forças para um imprescindível esclarecimento de ideias que abra a possibilidade de concretizá-las. É preciso trabalhar para uma nova ascensão da mobilização popular. E isso é, ao mesmo tempo, condição para a possibilidade de vitória do Lula e para evitar fraudes no Brasil, assim como para impedir a estratégia de lawfare na Argentina. Nesse cenário, a batalha ideológica assume uma centralidade particular na luta de classes. Em um contexto particularmente hostil, onde o poder econômico concentra uma gigantesca capacidade de disputa de sentido a partir de novas ferramentas de comunicação digital, essas lutas dependem de disputas com e sob uma perspectiva ancorada nas classes populares e subalternas. Por fim, a possibilidade de avançar em uma grande conferência internacional para debater os problemas que a humanidade atravessa hoje e interpretar suas possíveis soluções a partir dos movimentos populares é uma tarefa na qual os diversos processos populares começam a se envolver e é de fundamental importância neste contexto.  

Manuel Bertoldi

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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