Indústria: uma política a ser testada

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Publicado Quarta, 31 de Janeiro de 2024 às 09:23, por: CdB

Análise crítica e reflexiva sobre o Plano Nova Indústria Brasil: perspectivas, desafios e oportunidades para o desenvolvimento nacional. Todos os países usam esses instrumentos. Não são especificidades nacionais. Política industrial, por definição, é micro proteções para alavancar segmentos estratégicos da matriz produtiva nacional.


Por Abraham B. Sicsú – de Brasília


No dia 22 de janeiro último foi anunciada. Nova Indústria Brasil é o nome. Um plano de ação para reerguimento do setor e estancamento do processo de desindustrialização brasileiro. Mais que necessário.




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Lançamento do programa "Nova Indústria Brasil" pelo Governo Federal

Série de críticas açodadas são feitas. Pouco fundamentadas. Dizem:


“Um plano de R$ 300 bilhões” para quatro anos, um absurdo.


Responder a isso basta lembrar o que o presidente da Confederação Nacional da Indústria declarou:


“Os Estados Unidos, por exemplo, destinaram US$ 1,9 trilhão para um conjunto de instrumentos e incentivos à sua industrialização verde. A União Européia mobilizou US$ 1,6 trilhão; o Reino Unido US$ 1,7 trilhão e o Japão, US$ 1,5 trilhão. No Nova Indústria Brasil, são R$ 300 bilhões, cerca de US$ 60 bilhões, até 2026, pelo Plano Mais Produção, o que equivale a cerca de 3% do que os demais países estão fazendo.”


Também: “O Plano terá forte impacto fiscal”.


Esquece-se que 90% dos recursos vêm do BNDES, empréstimos de longo prazo a juros de mercado. Portanto, com retorno e não saem do orçamento federal. Além disso, os poucos recursos que tem taxas menores, vêm de fundos já existentes e inseridos no orçamento federal, ou seja, não são recursos novos, na sua totalidade voltados para a inovação, para a modernização, que em todos os países tem o Estado como financiador. Em síntese, não há impacto fiscal.


Ainda: “São mecanismos velhos que já mostraram ineficiência. Subsídios, compras governamentais, conteúdo nacional, não tem sentido no mundo moderno”. Ou, “Não é para todos os setores, apenas para alguns setores privilegiados”.


Todos os países usam esses instrumentos. Não são especificidades nacionais. Política industrial, por definição, é micro proteções para alavancar segmentos estratégicos da matriz produtiva nacional. O resultado depende das prioridades elencadas. E, desta maneira, devem ser seletivas e orientadas para suprir lacunas e aproveitar oportunidades que venham a surgir nessa complexa matriz. Isso é básico, os críticos deviam saber.


Com esse quadro, li o documento com interesse e alguns questionamento, acredito, podem ser feitos.


O Plano é baseado nas concepções que Mariana Mazzucato tem desenvolvido em seus trabalhos. Principalmente, no conceito de Missões como vetor de definição das políticas públicas. Necessário saber se o Plano está alinhado ao que é dito nestes preceitos e se há desvios observáveis. Vale salientar que ela mesma foi consultora na elaboração deste documento específico e no dia do lançamento publicou um artigo no Valor Econômico explicitando sua visão do mesmo.



No artigo afirma:


“Uma abordagem para missões é sustentada por uma compreensão do papel do Estado na economia que, ex-ante, seja sustentável e pré-distributiva. Isso contrasta com a idéia mais tradicional, que relega o Estado a corrigir falhas de mercado e a adotar uma colcha de retalhos de políticas isoladas, em que se buscam objetivos econômicos separadamente dos ambientais e sociais.”


Ou seja, reconhece o Estado como indutor do desenvolvimento no mundo moderno e a necessária articulação das visões econômica, social e ambiental. Mundo em que o processo de inovação cada vez mai acelerado passa a ser a principal arma da concorrência e definidor da competitividade e melhoria de posição dos diferentes países. O planejamento deve ter essa concepção como premissa, segundo ela.


A participação estatal tem princípios bem definidos, voltando a citar o artigo da professora:


“A estratégia almeja fazer com que os objetivos sociais, ambientais e econômicos estejam alinhados e destaca o potencial de transformar os desafios -como fome, mudanças climáticas e crise de saúde, em oportunidades de negócios e em canais de investimento.”


Um ponto relevante a destacar no artigo. Segundo a autora, a abordagem não pode ser meramente setorial, deve ser orientada pelos problemas efetivos que a sociedade tem e aos que o Estado deve dar resposta. Nesse sentido, é fundamental uma visão transversal que envolva as diferentes instâncias, Ministérios, Empresas Estatais, Órgãos Públicos, iniciativa privada enfim, todos os que têm uma efetiva contribuição para a resolução de problemas detectados, a serem enfrentado. Não ver a indústria isoladamente, compreender e agir em seus encadeamentos para frente e para trás.


Nas palavras de Mariana: “Para que a abordagem tenha sucesso, a abordagem inter-ministerial e inter-setorial será crucial.”


Com esses princípios em mente, voltemos ao Nova Indústria Brasil.


No documento elaborado foram definidos como objetivos:


“(i) estimular o progresso técnico e, conseqüentemente, a produtividade e competitividade nacional, gerando empregos de qualidade;


(ii) aproveitar melhor as vantagens competitivas do país; e


(iii) reposicionar o Brasil no comércio internacional.”


O Plano tenta explicitar essa lógica e os instrumentos a serem utilizados. Bem verdade, sem muito detalhamento, sem uma definição clara de responsabilidades, sem deixar evidente a articulação entre os diferentes atores. Nesse aspecto, importante salientar que não aponta as articulações com as empresas estatais ou para estatais, como Petrobrás ou Embrapa, fundamentais nas ações e estratégias priorizadas.


Seis missões são escolhidas como foco e elas serão a base para atuação.


A primeira missão, “Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética”, tem como meta geral para 2033 “aumentar a participação do setor agroindustrial no PIB agropecuário para 50% e alcançar 70% de mecanização dos estabelecimentos de agricultura familiar, com o suprimento de pelo menos 95% do mercado por máquinas e equipamentos de produção nacional, garantindo a sustentabilidade ambiental”.


Embora nos programas explicitados haja alguns com clara transversalidade, nota-se que o foco principal é a modernização da agroindústria com a mecanização da agricultura familiar.


Cabe lembrar que em todos os documentos preliminares esta missão tinha outro nome base, era Erradicação da Fome. O que induzia a uma maior ênfase a mecanismos de apoio à distribuição de alimentos e a organização dos mercados consumidores. Bem como. com a própria agricultura familiar. Alguns programas que são anunciados no documento podem assim ser lidos, mas houve uma nítida reversão para centrar nos interesses da indústria de equipamentos e para a modernização agroindustrial, o que diminui em muito o conceito de missão que tinha nos consumidores finais, na estrutura de produção alimentar e na distribuição de renda sua preocupação.


A segunda Missão, “Complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde” tem como objetivos “minimizar a importação de insumos básicos, hoje em 90%, na ordem de US$ 20 bilhões; alinhar as políticas industriais e de comércio exterior; aumentar a efetividade da indução ao investimento privado; reduzir o custo do crédito, especialmente para equipamentos e insumos; aumentar a produção nacional de equipamentos médicos, que hoje atende 50% da demanda; integrar e articular do uso do poder de compra nos diversos entes federativos; promover inovações disruptivas na área da saúde”.


Suas principais metas, também para 2033, são: “produzir, no país, 70% das necessidades nacionais em medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos, materiais e outros insumos e tecnologias em saúde”.



PAC


Novamente, nota-se uma ruptura na cadeia do setor. Centra-se em construir uma estratégia nacional para o setor da indústria para a saúde e nos recursos que o PAC já direciona para o segmento. No entanto, a articulação com o caótico sistema de assistência à saúde do país, com a assistência privada, com o tratar de doenças endêmicas peculiares a regiões especifica do Brasil, pouco, para não dizer nada, é citado. Uma missão muito relevante que deve ser vista em sua complexidade e em sua articulação com a área social que, inclusive, diga-se, já é apontada nos programas de governo para a área.


A terceira, “Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades” tem como meta principal “reduzir o tempo de deslocamento de casa para o trabalho em 20%. Aumentar em 25 pontos percentuais o adensamento produtivo na cadeia de transporte público sustentável”.


Nome pomposo que aborda áreas extremamente diversas e complicadas. Parece que a idéia era atacar as questões urbanas em sua diversidade. Numa primeira leitura, confunde-se com as ações do Ministério das Cidades. No entanto, ao agregar a questão da infraestrutura abordará também, principalmente, financiará as grandes obras para diminuir o custo Brasil, o que parece ser área diferente. Ainda, ao abordar a indústria automobilística e a energia verde, com ênfase para o carro elétrico, parece assumir uma nova linha de financiamento para este setor, o que tende para mais uma ação setorial. Na leitura do documento nota-se uma desconexão entre a meta principal da missão e os programas voltados para interesses setoriais da indústria.


A quarta Missão, ”Transformação Digital da indústria para ampliar a produtividade” tem como meta esperada para 2033 “transformar digitalmente 90% das empresas industriais brasileiras, assegurando que a participação da produção nacional triplique nos segmentos de novas tecnologias”.


Sem dúvida, algo muito necessário. Uma missão quase que se confunde com a responsabilidade do Ministério da Indústria. Fundamental, pois a perda de competitividade de nossas empresas é flagrante. O nível de digitalização e automação baixíssimo, o que faz com que a competitividade seja fortemente afetada. Um desenho direcionado, sem muito a questionar.


A quinta Missão está associada à sociedade que queremos, ao futuro que almejamos. “Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as gerações futuras”. Para 2033, tem como metas “promover a indústria verde, reduzindo em 30% a emissão de CO2 por valor adicionado da Indústria, ampliando em 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes e aumentando o uso tecnológico e sustentável da biodiversidade pela indústria em 1% ao ano”.


Reflete os compromissos que o Brasil já assumiu internacionalmente com a sociedade menos carbonizada, ambientalmente mais limpa. As propostas são adequadas e bem direcionadas. Podiam ser melhor explicitadas regionalmente. No entanto, fundamental entender o comprometimento das grandes empresas paraestatais, principalmente a Petrobrás, que deverá ter um papel estratégico na condução das ações. A articulação com a iniciativa privada, com os fabricantes de equipamentos, entre outros, têm na demanda e indução da mesma um papel básico. Bem como, todo o financiamento e indução à inovação que é base das transformações esperadas.


A sexta Missão é a de “Tecnologias de interesse para a soberania e defesa nacionais” que aspira, para 2033, obter autonomia na produção de 50% das tecnologias críticas para a defesa. Tem como objetivos específicos:


Obter autonomia estratégica nas cadeias produtivas ligadas às tecnologias críticas para a defesa, em particular nas de materiais, de propulsão, de controle e de comunicações;

Adensar as cadeias da indústria de defesa, segurança, naval e aeroespacial, em particular em tecnologias de base micro e nanoeletrônica;

Desenvolver e adensar cadeias industriais para aprimorar os sistemas nacionais de sensoriamento remoto;

Expandir as capacidades internas nas áreas cibernética, nuclear e espacial;

Desenvolver tecnologias duais e aumentar o aproveitamento dos transbordamentos tecnológicos entre os setores civis e militares; e

Expandir as exportações de produtos de defesa.

Não sendo especialista no assunto, mas sabendo de sua relevância para a soberania nacional, tendo sido construído fortemente influenciado pelos Ministérios setoriais, parece que a abordagem é adequada e o direcionamento das ações condizente com as metas propostas.



Em síntese, a leitura do texto parece apontar para:


O Plano é estratégico para o projeto de desenvolvimento do país vindo a tentar corrigir distorções que diminuíram em muito nossa competitividade.

A adoção da metodologia baseada em Missões faz com que os frutos do progresso esperado possam realmente vir ao encontro dos interesses de nossa sociedade.

A escolha dos temas das Missões parece adequada e ataca os principais problemas que vimos tendo hoje no País.

A explicitação das ações deve ser melhor detalhada e explicitada para sua implantação.

A participação de outros agentes fundamentais para o êxito na consecução das Missões é importante, como as empresas estatais e para estatais, a iniciativa privada e, principalmente, as instâncias representativas da sociedade brasileira.

Também, não fica claro se as instâncias citadas serão participantes ativas na formulação das políticas ou meros participantes com os instrumentos operacionais que já dispõe.

Os encadeamentos da indústria, para frente e para trás, dando uma visão de transversalidade ao Plano, pouco aparecem no texto atual e devem ser ressaltados.

As fontes externas de financiamento, captadas pelo BNDES, não são explicitadas, o que dificulta entender o fluxo de recursos para as ações e para a consolidação do programa.

Um Plano que tem por base a inovação no Brasil, não pode deixar de se articular e embasar nas Universidades e Centros de Pesquisa. Nada é dito no documento.

Por fim, falta a explicitação de mecanismos de monitoramento. Um Plano, para se efetivar precisa de um acompanhamento costante e correção de rumos.

 

 

Abraham B. Sicsú, é professor aposentado do Departamento de Engenharia de Produção da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e pesquisador aposentado da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco).


As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil




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