Uma breve mirada nos alimentos que chegam até nós, considerando as condições de moradia, saneamento e vida da maior parte da população, nos leva a questionar a segurança dos alimentos consumidos no Brasil.
Por Luiza Dulci – de Brasília
A data de 7 de junho foi escolhida pela Organização Mundial de Saúde da Organização (OMS) como o Dia da Segurança dos Alimentos. Em resumo, a segurança dos alimentos refere-se à qualidade dos alimentos, ou seja, à ingestão segura e adequada de nutrientes, pensada desde a produção até o consumo, visando à saúde humana e do planeta. Como se vê, desde o campo até a mesa e o descarte, uma série de condições precisam ser respeitadas para que as pessoas tenham acesso seguro aos alimentos.
Pandemia
Dados anteriores à pandemia apontavam que uma em nove pessoas do mundo passavam fome ou estavam em situação de insegurança alimentar. Em todo o mundo, eram mais de 2 bilhões de pessoas com deficiência de micronutrientes e 690 milhões com má nutrição crônica. No Brasil, dados recentes indicam que a fome quase dobrou durante a pandemia. Enquanto, no fim de 2020, 19,1 milhões de pessoas passavam fome a cada dia, atualmente, são 33,1 milhões de brasileiras e brasileiros nessa condição, identificada como insegurança alimentar grave. São mais de 125,2 milhões de pessoas vivendo em domicílios com algum grau de insegurança alimentar - o que corresponde a 60% de toda nossa população. De fato, "não dá pra esconder, não dá pra aceitar". O mais contraditório de tudo isso é que vivemos no país aclamado como "celeiro do mundo", onde o "agro é tudo" e dia após dia divulga manchetes de jornal destacando safras recordes de alimentos. Por que, então, a conta não fecha? Por que milhões de pessoas passam fome ou correm risco de comer alimentos inseguros, mal conservados e apodrecidos? E, ainda, por que, diante da fome que assola países do Sul Global, convivemos com uma taxa mundial de desperdício de mais de 30% dos alimentos no caminho que vai do campo à mesa, da produção ao consumo? As razões para tamanha calamidade são muitas, são históricas e são estruturais. Têm a ver com a matriz de desigualdades que organizam nossas sociedades e hierarquizam seres humanos segundo aspectos de raça, gênero, classe, uso e ocupação das terras (rurais e urbanas), acesso à educação de qualidade. Um dado que nos dá a dimensão do problema é o fato de que a Lei de Terras do Brasil (de 1850) veio antes da abolição da escravatura. O tempo não curou essa chaga e a desigualdade fundiária segue relevante: as propriedades rurais com mais de 2,5 mil hectares são apenas 0,3% das unidades e ocupam 32,8% das terras rurais de nosso país. A desigualdade de gênero também se faz sentir, haja visto que apenas 19% das cerca de cinco milhões propriedades rurais brasileiras são comandadas por mulheres.Concentração das terras
A concentração das terras, o avanço da monocultura agrícola e da pecuária sobre as matas e biomas como Mata Atlântica, Cerrado, Amazônia e outros e o próprio funcionamento do chamado sistema agroalimentar hegemônico contribuem para o aumento da fome, do desperdício e da insegurança alimentar. Todos esses problemas têm em comum o aspecto da desconexão, dos distanciamentos entre seres humanos e entre nós e a natureza. Tomemos o sistema agroalimentar, composto pelo conjunto de atividades e atores, privados e públicos, ligados à produção, transformação, distribuição, consumo e descarte de alimentos. Um elemento chave de seu funcionamento corresponde às grandes distâncias que separam produtores e consumidores de alimentos. Isto é, a comida viaja milhares de quilômetros no Brasil e frequentemente atravessa oceanos para chegar às gôndolas de grandes supermercados - quantos intermediários não lucraram com o processamento e o transporte desses alimentos? Outro aspecto associado à desconexão é o empobrecimento de nossa cultura alimentar. Com o aumento do consumo de ultraprocessados, nossa dieta está cada vez menos diversa e nutritiva. Ora, se já detectamos que as grandes distâncias são um problema, a solução deve estar na promoção de encontros, de trocas, de pontos de contato, ou seja, no encurtamento das distâncias - físicas e cognitivas entre pessoas e seus territórios Na agenda da comida, isso significa criar e fortalecer feiras e mercados locais, abastecidos pela agricultura familiar e camponesa; retomar e ampliar políticas de compras públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), vinculados à agroecologia; direcionar a pesquisa agropecuária pública para os desafios da agricultura familiar; regulamentar as normas sanitárias da agricultura familiar; incentivar o consumo de alimentos frescos e pouco processados, sobretudo nas periferias urbanas, também chamadas de desertos alimentares; e valorizar a recuperação das receitas e histórias de nossa cultura alimentar. Já a preservação e o manejo dos alimentos nas casas, lanchonetes e restaurantes requer políticas de distribuição de renda, geração de trabalho decente, programas e ações de moradia e saneamento. A saída é coletiva e está ao nosso alcance. Precisamos lutar por ela, nas ruas, nas redes e nas urnas.Luiza Dulci, é economista e doutora em sociologia, integrante do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo e constrói o Movimento Bem Viver MG.
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