A cada nova semana, as pessoas se perguntam se aquele fato surpreendente não seria, finalmente, o sinal de que teríamos atingido o limite do suportável. Mas, não! A destruição continua a todo vapor, apesar de o foco ter se desviado um pouco para reduzir o desespero do candidato à reeleição.
Por Paulo Kliass – de Brasília
A tragédia em que tem se transformado a realidade brasileira, desde a posse do governo Bolsonaro, se parece bastante com uma daquelas muitas séries que sempre deixam no ar a sensação de que está em produção mais uma temporada a ser oferecida em breve ao público. No nosso caso, porém, esperamos todos que essa terrível sucessão de desgraças seja interrompida a partir dos resultados das eleições marcadas para outubro próximo.Bolsonaro foge do debate sobre a economia
Enquanto isso, a vida segue muito difícil para quase todo mundo. O desemprego se mantém em níveis elevadíssimos e a remuneração dos trabalhadores permanece em trajetória de queda. Graças às mudanças introduzidas na legislação trabalhista desde o governo Temer, a precariedade e a informalidade foram brindadas com a categoria de legalidade. Boa parte dos que ocupam algum posto de trabalho alcançam ao final do mês uma renda inferior ao salário mínimo. Tudo isso travestido sob o discurso mentiroso do “empreendedorismo”, quando as atividades desenvolvidas por empregados de fato não encontram amparo e nem proteção, a exemplo de férias, FGTS, seguro saúde/acidente de trabalho e contribuição para previdência social. Mas o debate proposto é desviado para a suposta falta de transparência no sistema da nossa urna eletrônica. Guedes & Bolsonaro conseguiram a proeza de trazer o Brasil e volta ao mundo da estagflação. Trata-se da combinação perversa da redução acentuada das atividades econômicas com a permanência de níveis elevados do crescimento dos preços. Do ponto de vista teórico, inclusive, trata-se de um fenômeno da realidade que destrói os já frágeis fundamentos das teorias econômicas conservadoras, tais como a neoclássica ou a neoliberal. Afinal, de acordo com elas, a inflação seria eliminada por meio da redução da demanda, ou seja, por medidas contracionistas da atividade da economia. Mas no caso presente observa-se exatamente o oposto. Atravessamos um período de quase recessão e a inflação segue se apresentando com dois dígitos em seu índice anualizado. E de pouca valia tem se mostrado o arrocho monetário perpetrado pelo Comitê de Política Monetária (Copom) e pelo Banco Central (BC). A Selic foi levada de 2% para quase 12% e esse aumento de quase 500% na taxa referencial de juros, levado a cabo em menos de um ano, não afetou em quase nada o crescimento dos preços. E tampouco de nada valem os esforços de jogar a responsabilidade pela tragédia no colo de outrem. Bolsonaro bem que tenta dizer que tudo se trata de uma conspiração satânica contra o seu governo, chegando ao cúmulo de afirmar que nada pode fazer contra a política de preços da Petrobrás. Mas todo mundo está cansado de saber que se trata de uma empresa de economia mista, em que a União detém a maioria de ações e pode nomear o presidente e toda a direção do conglomerado. No caso da estagflação, ele também busca dizer que é um fenômeno global e que o Brasil não consegue ir contra a corrente que afeta a dinâmica da economia internacional. Mais uma mentira! Vamos aos números.PIB brasileiro com crescimento pífio
As diversas previsões oferecidas por instituições multilaterais para o desempenho das atividades no plano global para 2022 oferecem um panorama bem distinto. É bem verdade que os modelos de estimação da economia futura apresentam dificuldades intrínsecas à forma pela qual são elaborados. Assim, por exemplo, eventos inesperados podem afetar (e muito) a capacidade de previsão dos mesmos. Um caso típico é da atual crise internacional proporcionada pela guerra na Ucrânia, a invasão efetuada pela Rússia, os embargos promovidos pelos países da Otan e por aí vai. De todo modo, o fato é que as perspectivas de crescimento da economia brasileira para o ano em curso seguem bem abaixo de todos os demais países, em quase todos os espaços de comparação. Para começar, vamos aos dados dos países da América Latina e do Caribe. As estimativas mais recentes da Cepal indicam um crescimento do PIB de toda a região para 1,8% em 2022. A América Latina deverá registrar 1,7%, a América do Sul 1,5%, a América Central 4,2% e o Caribe 10%. Em meio a tal cenário, a Comissão prevê um crescimento do PIB do Brasil de apenas 0,4%. O gráfico abaixo permite tal visualização. Apesar de tal modelo não ter sido atualizado para incorporar os efeitos da crise da Ucrânia, a posição relativa entre os países não deve sofrer muita alteração. Na comparação com os países vizinhos da América do Sul, o Brasil continua em último lugar. Trata-se de mais uma forma de escancarar os efeitos nefastos provocados pela política do atual governo. A aposta de transformar o nosso país em um verdadeiro pária internacional, tal como assumida publicamente em outubro de 2020 pelo sincericídio cometido pelo antigo Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, pode ser bem expressa pelo gráfico abaixo. Por outro lado, o Fundo Monetário Internacional (FMI) já divulgou uma versão mais atualizada dos números oferecidos por seus modelos de previsão, incorporando os efeitos da crise da Ucrânia. Com tal mudança nos cálculos, as perspectivas para o crescimento do PIB brasileiro em 2022 ficam mais favoráveis, em razão dos aumentos dos preços das commodities e o consequente melhor desempenho de nossos setores exportadores. Assim, a previsão do Fundo para o crescimento de nosso Produto sobe para 0,8% esse ano. Porém, tal crescimento ainda é insuficiente para cobrir a diferença que permanece existindo entre o ritmo das atividades por aqui e no resto do mundo. A economia global deve crescer 3,6%, com o bloco dos países desenvolvidos atingindo 3,3% e as nações em desenvolvimento chegando a 3,8%. A comparação com os países do bloco dos Brics também evidencia a enorme distância que nos separa das nações com as quais mantemos algum grau de semelhança. No entanto, em razão dos efeitos negativos da guerra da Ucrânia e do embargo sobre a economia russa, torna-se mais prudente retirar esse país da base de cálculo do bloco (que aqui fica apenas como BICS, com Brasil, Índia, China e África do Sul) para efeito das comparações para o PIB de 2022. As informações constantes deste mesmo Relatório do FMI indicam um crescimento médio de 4,8% dos quatro países. Esse número sofre uma influência expressiva do crescimento previsto para a Índia, que deve crescer 8,2% segundo o Fundo. De todo o modo, mesmo China (4,4%) e África do Sul (1,9%) ficam ainda bem acima dos 0,8% estimados para o Brasil.Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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