Um ranzinza em Paris

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Publicado Sexta, 06 de Novembro de 2015 às 13:00, por: CdB
Por Apollo Natali, de São Paulo:
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Outro dia, o colunista entrou num avião da Varig (?) e desceu direto perto do Museu do Homem, em frente à Torre Eiffel.
Siga-me e eu te conto. Outro dia me deu na telha de conhecer Paris. Ranzinzas como eu não devem ir a Paris. Desde a minha casa ao aeroporto de Cumbica e de lá durante o vôo até a chegada, Paris nem me passava pela cabeça. Não me ligo a lugares, paisagens, museus, estátuas, viagens. História, sim. Tinha de ir a Paris. Sou chegado mais nos meus livros, no meu cachorro, no meu chuveiro, na minha cama de Romeu encalhado, na lembrança das mulheres que passaram. Minha cama hoje é um solitário catre de táboa dura e colchonete de palha. Vidrado mesmo sou em gente e ideias. É isso.

Chegamos. Paris!

Nestas plagas só dá Torre Eiffel. É vista de qualquer canto, pois a cidade milenar é feita toda de prédios baixos, sem espigões. Estonteante, impactante a beleza desse entrelaçamento de aço de luzes douradas tremeluzentes que alcançam o céu. O padre brasileiro Bartolomeu Lourenço de Gusmão, inventor do balão dirigível, esteve lá, faz alguns séculos, a dar voltas com seu brinquedo cheio de ar nessa torre da altura de um prédio de 100 andares. Inaugurada em 1889 em comemoração ao centenário da Revolução Francesa, recebe pintura de 2 em 2 anos. Reformada a cada 7 anos. Está sempre lindamente nova. Inquisição: o Santo Ofício cremou o padre brasileiro na fogueira, acusado de bruxaria por ter inventado o balão dirigível. Sabiam que Bartolomeu de Gusmão escondia dos inquisidores numa floresta os apetrechos do seu balão? Mais dia, menos dia, teria que subir. Foi pego. Só um ranzinza como eu pensa nessas coisas, em Paris.

Leia a placa da casa onde viveu Santos Dumont: o verdadeiro Pai da Aviação. Levantou vôo e aterrisou sob vivas no seu dirigível 14-BIS na Praça de Bagatelle, comecinho do século 20. Os irmãos Wright, a História conta, não está na placa, isso digo eu, voavam com um fraquinho motor tipo um ponto zero. Esticavam um grande estilingue para pôr o avião no ar. Os manos americanos voavam em linha reta. Santos Dumont, motor potente, subia. Inventou apetrechos para dirigir a sua jeringonça para lá e para cá, para cima, para baixo, esquerda, direita. O brasileiro ainda cruzou os céus de Paris no seu Demoiselle, quer dizer Senhorita, um aviãozinho lindo lindo que voava como uma vespa, o delírio da Belle Èpoque. Grande Santos Dumont, resmunguei. O pessoal da fila acho que não entendeu.

Eis o Largo da Concórdia, não o do bairro do Brás, em São Paulo e, sim, o francês, o De la Concorde. É a praça onde a Revolução Francesa decepou na guilhotina o pescoço de mais de 20 mil nobres e aristocratas. Tanta pompa, tanto brilho, tanta arrogância, brutais relações de domínio sobre a pessoa, para, enfim, ficar todo mundo sem o mais valioso bem da espécie humana, o pescoço. O público se amontoava dias antes para ver o morticínio. O povo pobre, crianças maltrapilhas rindo não sei do quê, mulheres de grossos vestidos até o calcanhar aguardavam fazendo tricô o trovejar da gilhotina. Carrancudos chefes de famílias, esqueléticos, barbudos, chapéus tristonhos, acompanham com movimento de cabeça, para cima, para baixo, uma a uma, o rolar das cabeças. Não havia banheiro químico. Em Paris, eu deliro.

Fui dar uma olhada na rua Dè Sevres, onde viveu o líder de outra revolução que se seguiu na França, 60 anos depois desse corte em massa de cabeças. Uma revolução espiritual, liderada pelo ex-ministro da Educação do país, cientista, professor de astronomia, física, química, diretor do Instituto Educacional Pestalozzi, na Suíça, messieur Alan Kadec. O novo revolucionário mostrou no seu livro O Céu e o Inferno o lugar para onde vão as almas dos déspotas depois da morte do corpo físico, os tiranos de todos os tipos, os do Estado, os domésticos, os midiáticos. O livro descreve a Justiça Divina, segundo o Espiritismo.

Mais adiante, a queima de arquivos em uma outra revolução, em Paris, chamada Comuna de Paris, destruiu a certidão de casamento de Alan Kardec com Améle Boudet. Reconstituído o documento, sem assinatura do cartório, lê-se: República da França. Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Beleza, essa França.

Imaginei, evidentemente, as barricadas da Comuna de Paris, trapos humanos armados em busca de poder, derramando sangue pelas ruas em que eu desliso, etéreo. A pergunta que não calou: por que aqueles revoltosos, conquistado o poder, o poder popular nas mãos, o entregaram de mão beijada a tiranos? Franco, Salazar, Hitler, Mussolini. No começo do século vinte, encafifados catedráticos da Universidade de Frankfurt formaram um clube político, a Escola de Frankfurt, para explicar esse contraditório comportamento humano. Erich Frohn, o último dos frankfurtianos, deu a resposta em 1950, em Medo à Liberdade: O ser humano tem medo de ser livre. Precisa pertencer a um todo para se sentir seguro. Então, entrega sua vida sofregamente a um ditador, uma religião, um clube de futebol, um patrão, ao fanatismo, à primeira ideologia que aparece à sua frente.

Estou de frente para a viela onde Alan Kardec morou e codificou as leis que regem o intercâmbio entre o mundo espiritual e o mundo físico, a chamada Doutrina Espírita. A Rue Dè Sevre é hoje uma via de passagem deteriorada, abandonada, esquecida, as casas parecendo desabar. Durante a realização, no século vinte e um, de um encontro espírita mundial, me contaram, a polícia cercou o pavilhão dos espíritas. As lojas de Paris exibiam placas: proibida a entrada de cachorros e de brasileiros. Isso no coração da cidade-berço do Espiritismo. Uma revolução ao avesso.

No meio da praça histórica de La Concorde, arrepiem-se os sensíveis, diante desse monumento egípcio. É uma coluna quadrada afinada em cima com dizeres falando de cinco mil anos de sabedoria. Novinho, parece ter sido concluído há uma semana pelo artista. Nesse chão de La Concorde, a Rainha Maria Antonieta chora para não ver seus filhos morrer na frente dela. Suplica para ser guilhotinada antes. Negativo. A senhora vai ver com seus próprios olhos a maneira brutal e sanguinária como o seu governo tirânico matava os filhos dos outros, rangem os revolucionários. Rios de sangue não teriam se formado, talvez, se a Rainha não tivesse mandado os pobres que não tinham pão, comer brioches. Infeliz rainha, desabafei irônica e ranzinzamente, respirando fundo o ar de La Concorde, se a senhora tivesse inventado pelo menos uma miserável Bolsa Brioche, à maneira da consolidada Bolsa Família brasileira a pacificar estômagos, não chegaria a essa situação. Em Paris, eu deliro.

Amigão, você já viu o límpido rio Sena que cruza Paris e o comparou ao longo curso de esgoto a céu aberto que é o Tietê, em São Paulo. Percorremos a estupenda avenida Campos Elíseos, o quilométrico jardim de Versailles. Contemplamos o, bota suntuoso nisso, palácio de ouro de mesmo nome, bunker dos poderosos da época, reis, rainhas, áulicos da corte com seus lobbyes, camareiras, cavalariços, turbinadas damas a precisar de uma pá de criados para ajudá-las a tirar a roupa na correria para fazer xixi. (Isso é coisa de se pensar em Paris?). Os poderosos daquele plantão respiravam brilho, ouro, prata, nas camas, carruagens, vestimentas, no chão, paredes, corredores, tetos, comiam do bom e do melhor, dançavam daquele jeito afrescalhado que vemos nos filmes, se lixavam para os famintos. Isso estudamos na escola. Se eu soubesse que um dia poderiam cortar a minha cabeça na guilhotina por viver em um dourado paraíso absolutista, eu ia me meter no meio dos pobres. Enfim, a História acontece e ninguém pode impedir. Para dar uma forcinha, por trás da História está a mão de Deus, disse o pensador alemão Immanuel Kant. Bobagem dizer pensador alemão. Todos os pensadores são alemães.

O passeio no metrô de Paris. Por baixo da cidade, uma rede de trilhos como teia de aranha com rodas de aço. Dão mapas para ninguém se perder no labirintão. Alguém já viu trens de metrô com pneus em vez de rodas de aço? Tem alguns, lá.

E não se vai a Paris sem ir ao Louvre. Um mundo de obras de arte e antiguidades juntas! Para visitá-las todas, apregoou o guia do museu, levaríamos seis meses contemplando cada uma delas por um minuto e sem interrupção, nas 24 horas do dia. Ao delirar diante do encanto do original da obra mais visitada, a Monalisa, de Leonardo Da Vinci, apertado entre outros turistas, bateram-me a carteira. Do bolso de trás levaram-me os euros. Idênticas algumas ideias, lá como cá.

O Arco do Triunfo!

Em Roma, os legionários vencedores desfilavam por baixo do arco do triunfo deles. Em Paris, foram as tropas vitoriosas de Napoleão Bonaparte que cruzaram esse monumento francês. Decepção: o ranzinza aqui se amargurou lá, em plena Paris, com a reprise mental das tropas nazistas violando o Arco do Triunfo francês, chafurdando por baixo dele. Que horror. Que beleza, que emoção circular por Montmartre, bairro boêmio dos eternos pintores. Bons amigos, lá, eram Gauguin e Van Gogh, nos conta William Somerset Mougham em Um Gosto e Seis Vinténs, biografia dos dois. Simpaticamente um pouco loucos, os dois.

No mais, uma visita à periferia de Paris me fez parecer que eu estava na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. Não me vi muito vidrado nas gentes da atual Paris. Os franceses que mudaram o mundo, hoje não se dão a mão ao se cumprimentar, não se abraçam, não são efusivos como gente italiana e brasileira como eu. Você lá, eu cá, assim me parecem os franceses de Paris. Acontece que eu abomino um abismo afetivo entre seres humanos. Prefiro a calorosa Vila Cruzeiro. As francesas são lindas, lindas, eu vi, eu vi! As afetuosas vilacruzeirenses, muito mais.

Nada mais a declarar.

Apollo Natali foi o primeiro redator da antiga Agência Estado, foi redator da Rádio Eldorado, do Estadão e do antigo Jornal da Tarde. Escreve atualmete para diversos sites e blogs de notícia, como o Observatório da Imprensa. Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.
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