Rio de Janeiro, 17 de Outubro de 2024

Se São Paulo é a locomotiva do Brasil, o maquinista perdeu o controle

Arquivado em:
Quinta, 17 de Outubro de 2024 às 09:25, por: CdB

A pergunta que fica é: vamos continuar aceitando uma gestão que só acende as luzes quando convém a uma minoria, ou vamos buscar um projeto que ilumine todos os cantos?

Por Amarílis Costa – de São Paulo

São Paulo, a autoproclamada “locomotiva do Brasil”, está cada vez mais parecida com uma máquina enferrujada, avançando rumo ao colapso. A ideia de que esse município é o motor do progresso nacional soa, neste momento, como um devaneio narcisista. Em novembro de 2023, vivemos um apagão que deixou milhões sem luz e expôs a fragilidade de uma infraestrutura que deveria sustentar a maior metrópole da América Latina. Um ano depois, cá estamos novamente, reféns de outro apagão, com cenas que parecem tiradas de um déjà-vu sombrio. A cidade que nunca dorme agora também não acende a luz.

Enel-SP.jpg
São Paulo, a autoproclamada “locomotiva do Brasil”

Se São Paulo é de fato a locomotiva do Brasil, está claro que o maquinista perdeu o controle. A comparação com o furacão Milton, que recentemente atingiu a Flórida, é inevitável. Nem um furacão é capaz de causar o mesmo estrago que um governo omisso e apático. Aqui, bastou uma tempestade relativamente comum para transformar a cidade em um caos absoluto, com bairros inteiros às escuras, semáforos apagados e um transporte público que colapsou por completo. O apagão, que deveria ser um evento excepcional, tornou-se parte do cotidiano paulistano, uma repetição amarga da falta de planejamento e da inércia governamental.

Há três dias, 537 mil imóveis e mais de 130 escolas estão sem energia, até o momento em que escrevo este texto, e, até agora, não há previsão de restabelecimento. A Zona Sul, previsivelmente, é a mais afetada. Esse é o terceiro apagão em menos de um ano, quando bairros periféricos ficaram uma semana sem energia. Muitos alertaram para a necessidade de reformular profundamente as políticas públicas de gestão de crises e infraestrutura. No entanto, a repetição do caos em 2024 revela que pouco ou nada foi feito. A privatização da Eletropaulo, em 1998, e a subsequente venda para a Enel, em 2018, vieram com a promessa de um serviço mais eficiente e moderno. Mas a realidade atual desmente essas expectativas e, nas periferias, a luz ainda não chegou, em todos os sentidos.

Bairros como Campo Limpo, Capão Redondo e Jardim Ângela são constantemente os primeiros a apagar e os últimos a recuperar a eletricidade. Enquanto as áreas nobres rapidamente voltam à normalidade, as periferias enfrentam uma escuridão que se arrasta por muito mais tempo, como se a desigualdade fosse parte do cronograma da cidade.

As periferias pagam o preço da privatização que prometeu luz, mas entregou escuridão

Pior, a Aneel já denunciou que a Enel mobilizou menos funcionários do que o previsto em seu plano de contingência. E, na ciranda de desculpas, o prefeito culpa as árvores, o governador culpa os ventos, e a concessionária culpa o clima. Enquanto isso, os moradores continuam à própria sorte, sem luz e sem respostas. São Paulo, com sua importância econômica e política, não pode ser refém de uma chuva ou de um vento mais forte. A verdade é que o apagão de energia reflete um apagão de governança.

A escuridão

Essa falta de comprometimento com as áreas mais vulneráveis não é novidade. A escuridão aqui vai além da falta de eletricidade. É também uma escuridão política, econômica e social, que assola esses territórios muito antes dos apagões. A desigualdade no fornecimento de energia é mais um reflexo da lógica perversa do racismo ambiental. Nas zonas mais pobres de São Paulo, o colapso no fornecimento de energia não é apenas mais um problema, é a materialização do descaso histórico, que agora lida com alimentos estragando, comércios fechados e a vida em suspenso. Como dizem os Racionais MC’s, em Tempos Difíceis, “o domínio está em mão de poderosos, mentirosos. (…) Prometem 100%, mentindo, fingindo, traindo. E na verdade, de nós estão rindo”. A São Paulo que apaga as luzes nos bairros periféricos é a mesma que falha em oferecer transporte digno, segurança e moradia para grande parte de seus habitantes. A classe média, confortável em seus enclaves, continua a viver no mito de uma cidade que “funciona”, mas só para ela. A falta de consciência de classe se reflete na incapacidade de enxergar que essa crise é a mesma que, cedo ou tarde, vai bater à sua porta.

O apagão

O apagão é um alerta sobre a importância de um olhar atento às periferias e àqueles que sempre foram invisibilizados. O apagão de São Paulo nos revela a urgência de um projeto que seja verdadeiramente inclusivo, que leve em consideração as vozes das margens, que clamam por dignidade. Não podemos mais aceitar uma cidade que deixa a maior parte de sua população às escuras, tanto no sentido literal quanto no figurado.

Esse apagão atual, que, repito, já é o terceiro em um curto intervalo de tempo, é um reflexo direto de um sistema político e administrativo que parece ter perdido a capacidade de reagir às necessidades reais da população. A falha não está apenas nos cabos ou nas subestações, ela está em um modelo de governança que se revela cada vez mais impotente. O que está às escuras, afinal, não é apenas a infraestrutura elétrica, mas também a própria capacidade da cidade de se pensar de forma sustentável, inclusiva e preparada para o futuro.

Além disso, como pontua Cida Bento, o apagão da gestão paulistana reflete também a falência do pacto narcisista da branquitude, que mantém a periferia sempre à margem, como a mais afetada e esquecida. Enquanto os bairros nobres contam com soluções emergenciais, o povo periférico continua à mercê da falta de planejamento, de políticas públicas que garantam seus direitos mais básicos. É nessa São Paulo de contrastes que a ausência de luz nos lembra de uma ausência ainda maior: a de uma liderança comprometida com todas as camadas da sociedade.

Enquanto isso, a cidade se prepara para o segundo turno das eleições. Sob os holofotes, as promessas de renovação e continuidade brilham intensamente. Mas, fora do palco eleitoral, questões estruturais seguem em segundo plano. Até o momento, a promessa de “fazer diferente” ainda não acendeu a luz nas regiões que mais precisam. Esse episódio é uma oportunidade rara para repensarmos os rumos da atual gestão. Não basta culpar concessionárias ou alegar eventos climáticos. Trata-se da nossa capacidade de construir uma cidade que funcione para todos, não apenas para quem pode pagar por soluções privadas quando os serviços públicos falham.

Pelas bandas do Brasil, há um Milton com voz de furacão que nos lembra que “todo artista tem de ir onde o povo está”. Que assim seja também com as lideranças políticas: que estejam onde o povo sofre. São Paulo merece não só um bom governo, mas um governante de fato e de direito, que se coloque ao lado do povo, onde o calo aperta, onde a dor é maior. Que as luzes se acendam não apenas nos centros de poder, mas nas quebradas e nas zonas historicamente esquecidas.

O discurso que coloca São Paulo como a “locomotiva do Brasil” precisa ser repensado urgentemente, pois a cidade não está puxando o progresso, mas sim sendo afundada pelo peso de sua própria inércia. O apagão que deixou mais de meio milhão de paulistanos no escuro vai muito além de uma falha técnica: nos dá, mais uma vez, uma janela para refletir sobre o que queremos para São Paulo. A pergunta que fica é: vamos continuar aceitando uma gestão que só acende as luzes quando convém a uma minoria, ou vamos buscar um projeto que ilumine todos os cantos, inclusive aqueles que vivem há décadas na escuridão? Até lá, seguimos à deriva. E o último a sair que apague a luz, se ela ainda voltar.

 

Amarílis Costa, é dvogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

Edições digital e impressa
 
 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo