No sábado 21 de janeiro, temos o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Então a hora é boa de cantar o Terreiro do Pai Adão, sobre o qual escrevi no Dicionário Amoroso do Recife.
Por Urariano Mota – de São Paulo
Xangô, Terreiro de Pai Adão Não estranhem que usemos xangô em lugar do nome candomblé, porque em Pernambuco é assim. O dicionário Houaiss registra que Xangô é 1. orixá iorubá dado como o quarto rei (lendário) de Oyo, na Nigéria, cuja epifania são os raios e os trovões; 2. culto afro-brasileiro que constitui uma alteração do padrão litúrgico nagô, adaptado por diversos grupos étnicos conviventes no Nordeste do Brasil.Repressão de cultura e de religião da época
É preciso ser menino, é preciso ter passado pela repressão de cultura e de religião da época, é preciso saber que todo o bom da vida era proibido, que o magnífico, por ir além do medíocre, era vetado, porque se tratava sempre de um trato não escrito com as profundezas do mal, ou de um acordo com o seu mais ilustre representante. É preciso esse mais que cinema para compreender os olhos esbugalhados da infância que bebiam uma noite de toque no Terreiro de Pai Adão. E de tal modo é permanente essa marca e feitiço, que na entrevista com Iá Luiza, em 2014, eu lhe perguntei se todos os dias eram de celebração e festa dos santos. Ela me respondeu, para meu maior desapontamento, que as comemorações eram quatro por ano. “Mas não é nem todo fim de semana?”, perguntei. “Naaão”, ela me respondeu. E o menino persistente apenas resmungou, “interessante”, para não cair em um silêncio absurdo. Na enciclopédia digital se informa que a história do Sítio, o Terreiro de Pai Adão “começa por volta de 1875, com a chegada ao Brasil da africana Inês Joaquina da Costa (Ifá Tinuké) também chamada de Tia Inês, que morreu em 1905. Foi a fundadora do atual Sitio de Pai Adão, no Sítio de Água Fria, no Recife. É a mais antiga casa de culto Nagô de Pernambuco e uma das mais venerandas do Brasil, considerada uma das matrizes da nação de culto afro-brasileiro Nagô… O sítio ainda preserva em seu espaço físico um baobá com mais de um século de existência e com mais de 10m de diâmetro, raro no Brasil por ser mais comumente encontradas espécimes desse porte nos locais de onde são nativas, na ilha de Madagascar (o maior centro de diversidade, com seis espécies), no continente africano e na Austrália (com uma espécie em cada)”.Terreiro de Pai Adão
Mas nessa informação do baobá a Wikipédia comete um forte engano. Apesar da semelhança, grosso modo de olhar essa árvore somente pela altura e tronco, não é um baobá, é uma gameleira, há mais de 138 anos no Terreiro de Pai Adão. Acreditamos que erros assim possuem uma razão mais funda, muito além e distante de uma falha acadêmica. Como sempre ocorre com as manifestações populares, que ou não têm intelectuais nascidos no seu meio, ou quando os têm, mal falam da sua gente, porque se encontram mortos de vergonha da origem e querem ser aceitos pelo chamado mundo erudito, aqui também, no Terreiro de Pai Adão, falta uma história sistematizada, diria mesmo, até arqueológica, de recuperação do que foi coberto e enterrado. Uma história sem fronteiras com a literatura, que pesquise os registros indiretos do Terreiro até em notícias das páginas policiais, quando os pais de santo eram presos. Para este dicionário, tive uma conversa, entre receosa e desconfiada com a Ialorixá Luiza. Receio e desconfiança de Iá Luiza, o que era natural, pois ela nunca me havia visto antes, e desci, baixei de repente à sua casa numa noite de segunda-feira de 2014. Pensei em escrever que ela me prestou um depoimento, mas isso ainda é falso, porque apenas anotei aqui e ali algumas frases da Ialorixá, que saíam a custo. E não poucas vezes ela recriminou a profunda ignorância deste estranho sobre as coisas sagradas do terreiro. Por exemplo, a dificuldade de entender a descendência e os seus laços com o mais famoso pai de santo, porque ela é viúva do neto de Pai Adão. Entender a sua vitalidade, pois ela estava com mais de 85 anos, sorrindo diante de algumas perguntas, para dizer o mínimo, bastante óbvias. Ela sorria à beira da gargalhada, de tal modo que difícil era o intruso acreditar na data do seu nascimento, em 24 de outubro de 1928.Corrente de solidariedade
Da conversa com ela, anotei a frase “eu sei ler, tenho caligrafia e tenho ortografia”. Bonito. Mas o mais grato foi saber da existência de uma corrente de solidariedade entre todos os moradores do Sítio, uma comunidade de 66 pessoas, com laços que se cruzam em parentes de sangue ou afinidade. Quando Iá Luzia enviuvou, não lhe deixaram faltar nada, ela me falou. Se adoecer, todos correm para o socorro urgente. No Terreiro existe uma defesa mútua e sólida, que não conheço em outros aglomerados ou vizinhanças. A vontade que deixa na gente é de um dia pertencer à comunidade. No momento mesmo da conversa, pude sentir a vigilância que mantinham sobre este estranho, numa guarda que não aparece, mas se espalha onipresente. A idosa Iá, que não é velhinha, estava amparada. O Babalorixá atual é Manoel do Nascimento Costa, mais conhecido como Manoel Papai. Eu já havia conversado com Papai em outra oportunidade, no tempo em que ele brigava para que fosse reconhecido o Terreiro de Pai Adão como um templo religioso, e assim merecer a isenção do IPTU, como acontece com outras religiões. Naquela ocasião, ele também me espantou de outra maneira. Papai falava com naturalidade sobre as coisas do espírito, sobre a crença no sagrado, no mesmo campo e tempo em que discorria sobre o direito terreno do Sítio. Sereno e culto, sem afobação. Desta última vez, com Iá Luzia a maior surpresa foi a revelação no fim da nossa conversa. Então eu soube que ela, mãe de santo, nunca se manifestou no terreiro. Isso quer dizer, ela nunca deu mostras de estar possuída por um santo, com o corpo em transe. No entanto, o quanto e como ela me olhava sem piscar, atenta e penetrante. Agora ao terminar o verbete Xangô é que percebo, o santo de Iá Luiza é ler a gente nos olhos. E da leitura concluir que não havia maldade nas perguntas de um ignorante.Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.
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