De volta para o passado

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Publicado Quinta, 29 de Setembro de 2016 às 11:32, por: CdB

Os procuradores da República são igualmente mal interpretados. Eles não pretendem e poderiam pretender o ato de fazer Justiça. As classes médias entusiasmadas confundem-se e os tomam como os novos heróis da Pátria

 
Por Maria Fernanda Arruda - do Rio de Janeiro
  Com muita frequência é feito o alerta: a História não se repete nunca. É exatamente isso o que estamos assistindo, com os procuradores da República, jovens anacrônicos, nos desvãos de uma história acontecida na primeira metade do século passado. Eles estão a nos lembrar dos tenentes de 1922.
unnamed2.jpgMaria Fernanda Arruda é colunista do , sempre às sextas-feiras
Correio do Brasil
O “tenentismo”, em primeiro lugar, enriqueceu sobremaneira a crônica histórica romântica, com capítulos dramáticos, como “os 18 do Forte”, a Revolução de 1924 e em especial a “Coluna Prestes”. De acordo com Virgílio Santa Rosa, os jovens oficiais terão sido a voz de uma classe média que estava sufocada pelas elites, mas as ideias expostas pelos próprios tenentes não confirmam a tese. Durante a República Velha, isso sim explica, o Exército iniciou um processo de profissionalização, orientado por uma "missão francesa", implicando numa valorização do militar, enquanto profissional que adquiria, juntamente com a formação técnica, uma consciência de dever a cumprir, o que permitiu à oficialidade a elaboração de uma ideologia, reconhecendo-se enfaticamente como estamento,afirmando a superioridade da formação castrense à civil, predominantemente bacharelesca. Mais exatamente, e dentro da corporação, uma geração de jovens oficiais organizou-se como um grupo homogêneo, unido pela convicção de serem senhores de uma cidadania de qualidade melhor, essa união facilitada pelo uso da farda, da linguagem castrense, pelo poder de ordenar e convencer. Os "tenentes" compuseram-se em um estamento, que se manteve coerente e em busca do poder até 1964, quando enfim seus ideais tomaram forma, para submeterem o Brasil por 20 anos.

Procuradores da República

Os procuradores da República são igualmente mal interpretados. Eles não pretendem e poderiam pretender o ato de fazer Justiça. As classes médias entusiasmadas confundem-se e os tomam como os novos heróis da Pátria. Eles são chefiados por Deltan Dallagnol, mestrado em Harvard, pregador religioso batista, surfista que viaja para Indonésia para buscar ondas perfeitas, Procurador da República, 36 anos, ele tem uma obsessão, fundada numa visão ideológica fundamentalista que o leva à prática de um messianismo provinciano que desembocou no autoritarismo fascista. Os procuradores da República afirmam sua superioridade. Seus cursos no exterior, somados à sua fé, os fazem mais puros, mais honestos, prontos para punir severamente os corruptos, todos os que não fazem parte de seu estamento.
18-forte.jpg"Enquanto os jovens tenentes de 1922 associaram-se e formaram-se como estamento, sustentados por padrões de profissionalização da formação militar ensinados pela missão francesa, os jovens procuradores de 2016 unem-se, como estamento rígido, sustentados pelos dogmas e gritos fundamentalistas de missionários norte-americanos"
Juarez Távora e Luis Carlos Prestes representam os extremos, os opostos do “tenentismo”. Ingressando no Partido Comunista e negando apoio aos revolucionários de 1930, Prestes tornou-se inquestionavelmente o grande nome do Partido Comunista, perseguido, preso, feito senador em 1946, para ser novamente perseguido, enfim derrotado em 1964. Juarez Távora foi o que teve vida pública mais longa, gradativamente se transformando em conservador extremado, que se comprometeu com a ditadura instaurada em 1964. Juarez Távora manteve-se por toda a sua longa vida fiel à ideologia identificada com a farda, vestida por ele juntamente com o pensamento de Alberto Torres.

O Clube

O tão famoso "Clube 3 de Outubro", atuando no Rio de Janeiro, com Juarez Távora, Pedro Ernesto, Goes Monteiro e muitos dos jovens tenentes, foi porta-voz desse ideário totalitário, fonte de inspiração para Ernesto Geisel . O Clube, em 1934, proclamava: “Sem conselhos técnicos, órgãos estáveis e de competência especializada, capazes de traduzir as aspirações teóricas em termos de exequibilidade prática, jamais será possível organização que nos liberte do empirismo aventureiro dos estadistas-terremoto, gerados da cabala e dos conchavos e geradores de catástrofes a serem pagas por gerações e gerações. Juarez Távora tornou-se o “vice-rei” do norte; Juraci Magalhães, um novo orixá baiano; Cordeiro de Farias, o conspirador constante; Filinto Muller, o chefe de uma polícia secreta... Os tenentes ressurgiram, alimentados pelo mito que se criou, em fins da década dos anos 40, com a criação da Escola Superior de Guerra, mantendo a sua ideologia autoritária, nesse novo momento já comprometidos com novas alianças, compondo-se com os políticos mais conservadores que, tanto quanto eles, não suportavam a “ignorância do populacho”. Juarez Távora foi, não por coincidência simples, o primeiro comandante da ESG. Também, candidato da UDN à Presidência da República, derrotado por Jânio Quadros.

Conspiradores

As derrotas sucessivas, experimentadas nas disputas políticas democráticas permitiram ao estamento militar uma coleção de fracassos. Com a sua vitória com uso das armas em 1964, enfim, extravasaram o despeito e o ódio recalcado por vinte anos. Abelardo Jurema,ministro de Jango, anotou, no depoimento sobre a sua prisão e envio para a Escola de Estado Maior do Exército: “Do começo da Avenida Pasteur até a Escola, a praça era de guerra. Vários obstáculos espalhados pela Avenida e ao longo de toda a praça central da Praia Vermelha. Não vi soldados. Toda a tropa era de oficiais graduados e com metralhadoras. Senti, mais uma vez, como estavam enganados aqueles que subestimavam as Escolas do Exército... Sim, compreendi que seria impossível a vitória completa do Governo. Aquela oficialidade estava disposta tudo. Não se entregaria e nem se renderia, fosse qual fosse a sorte da luta. Eram fanáticos, como já se disse. Nas fisionomias de cada um, senti lampejos até de ódio”. E é exatamente o culto fanático que nos permite mais uma vez unir os tenentes de 1922 aos procuradores de 2016. Os oficiais graduados que ocuparam as ruas em 1º de abril de 1964, trazendo o ódio em suas caras, um ódio que logo em seguida foi posto nas palavras de de Costa e Silva, usavam a violência do arbítrio que, depois de meio século, os procuradores da República de Curitiba repetem. Tasso Genro é bom observador: "o que diferencia Deltan Dallagnol é o seu fundamentalismo provinciano, que o conduz a ao fascismo rústico”.

Visão de mundo

Vale a pena seguir Tasso Genro em outras de suas linhas: "Em audiência com parlamentares em junho deste ano, repetindo juízos dramáticos proferidos em outras oportunidades, o Procurador sintetizou a sua visão de mundo e do Direito: “A corrupção é uma assassina sorrateira, invisível e de massa. Ela é um serial killer que se disfarça de buracos de estradas, de falta de medicamentos, de crimes de rua e de pobreza”. Tudo falso. Frases de efeito, sem fundamentação científica ou doutrinária, e pior: a partir da fórmula vulgar, de que a corrupção é uma “assassina sorrateira”, o Procurador transforma-a numa mera “impressão” cotidiana, que aparece diretamente na debilidade das prestações públicas do Estado. Nesta fórmula, então, a corrupção não é um mecanismo clássico e visível de estabilização do poder, utilizado por todos os governos (tanto dentro como fora do Estado de Direito), mas um veneno promovido pela falta de ética e de religião (por sorrateira e invisível) como, aliás, é descrito o próprio diabo, nos diversos fundamentalismos de mercado.

Estado de Direito

O procurador Dallagnol não se preocupa com provas, bastando-lhe as próprias convicções, não acusa, mas julga, proferindo sentenças condenatórias, antes que o faça o juiz. ",já tornou os réus culpados absolutos, antes de começar o processo. Pergunta que se impõe, em defesa do Estado de Direito: os Procuradores Federais no Brasil, são os Juízes “totais” de si mesmos, Magistrados do Direito e da Política, só porque tem o apoio irrestrito do oligopólio da mídia? O Estado de Direito se derrete neste silêncio, omissivo e cúmplice. Ele nos faz reféns do fundamentalismo religioso e jurídico, que pode, sim, também um dia, comer seus próprios filhos. O inquisidor Dallagnol é membro da Igreja Batista de Bacacheri, bairro de Curitiba, onde costuma ministrar palestras com seu indefectível powerpoint. Usa de imagens fortes para impactar as plateias. O mesmo sujeito que apontou Lula como “comandante máximo” e “grande general” da “propinocracia” gosta de lembrar que “a corrupção é uma assassina sorrateira, invisível e de massa”, uma “serial killer que se disfarça de buracos de estradas, de falta de medicamentos, de crimes de rua e de pobreza”.

Posição clara

Palavras de Dallagnol: “Neemias quando viu a cidade sem muros identificou o problema. A primeira reação de Neemias foi ter compaixão, Neemias chorou. Em seguida, Neemias jejuou e orou. A igreja já fez isso? Então, o que Neemias fez em seguida? Neemias agiu. Neemias vai ao rei e assume uma posição sacrificial, correndo risco de vida e diz ao rei que quer reconstruir os muros de sua cidade. Se nós queremos mudar o sistema, nós precisamos continuar orando, assumir uma posição clara, propor e apoiar medidas e projetos que contribuam nesse sentido”. Ele não tem provas, mas esta´convencido: " A corrupção é uma assassina sorrateira, invisível e de massa. As origens do palavrório insensato do Procurador contra Lula estão aí, apontando para o desequilíbrio emocional de um jovem inculto, que substituiu as letras jurídicas por aquelas que imagina estarem numa Bíblia mal traduzida e mal composta. São palavras suas: "“Dentro da minha cosmovisão cristã, eu acredito que existe uma janela de oportunidade que Deus está dando para mudanças”.

'Irmão em Cristo'

Ele não está só, ele é membro de um estamento, que tem por referência a figura de Paschoal Piragine Júnior, famoso desde 2010, quando exortou seus fieis a não votarem em candidatos do PT por causa do posicionamento do partido em relação a temas como aborto, criminalização da homofobia e divórcio. Uma das admiradoras mais entusiasmadas de Dallagnol é Marisa Lobo, autodenominada “psicóloga cristã”, campeã de causas como a da cura gay. Marisa faz conferências na mesma igreja do amigo sobre sua nova obsessão, a ideologia de gênero, tema de seu último livro. Dallagnol tem a companhia de um outro procurador, Roberto Pozzobon, anunciado em sua igreja como "nosso irmão em Cristo, Procurador da República e colaborador do juiz Sergio Moro." Desse último é a frase que consta da delação feita contra Lula: “Não teremos aqui provas cabais de que Lula é o efetivo proprietário, no papel, do apartamento, pois justamente o fato de ele não figurar como proprietário é uma forma de ocultação”.

Moços de fé

As origens desse "bando" de moços de fé estranha são conhecidas e estarrecedoras: durante os anos 1950-60, missionários fundamentalistas norte-americanos implantaram diversas instituições para-eclesiásticas no Brasil, organizando acampamentos, fundando editoras, livrarias, conjuntos musicais, trazendo uma fé irracional, trabalhando com crianças e jovens, para formar gerações de abestalhados/alienados que perderam o compromisso com o País, com a fé, com o exame das Escrituras, com a liturgia, com a tradição não-conformista do protestantismo. Enquanto os jovens tenentes de 1922 associaram-se e formaram-se como estamento, sustentados por padrões de profissionalização da formação militar ensinados pela missão francesa, os jovens procuradores de 2016 unem-se, como estamento rígido, sustentados pelos dogmas e gritos fundamentalistas de missionários norte-americanos. E é assim que o estamento dos jovens de 2016 estão fazendo uma lastimável volta ao passado. São usados pelo juiz Sergio Moro e servem aos interesses das elites nacionais e internacionais. Juarez Távora também serviu, fazendo-se o maior inimigo da Petrobrás. Será uma simples coincidência? Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras.
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