Ancestrais guardiões do planeta

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Publicado Quarta, 06 de Dezembro de 2023 às 09:50, por: CdB

A cruzada ecológica integra as agendas cotidianas do povo preto. Sabemos, desde sempre, a necessidade da preservação, do manejo sensato dos recursos naturais, da agroecologia, do respeito às outras espécies que dividem a Terra conosco.


Por Sandra Braga – de Brasília


O consenso científico que aponta a África como berço da humanidade significa um ancestral lugar de fala para o momento de luta pelo planeta. De lá vêm os saberes que nos ajudam a cuidar de nossa única morada, hoje metida em crescente desequilíbrio. No país-chave para o contra-ataque, a terra da Amazônia e de outros biomas essenciais, os descendentes de África têm muito a contribuir na urgência global. Ouçam os quilombolas!




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Em Cidade Ocidental (GO), quilombola Edilson Pereira Dutra mostra sua plantação dentro do território

A cruzada ecológica integra as agendas cotidianas do povo preto. Sabemos, desde sempre, a necessidade da preservação, do manejo sensato dos recursos naturais, da agroecologia, do respeito às outras espécies que dividem a Terra conosco. Nossos territórios oferecem exemplos e lições, enquanto lutamos pela própria existência.


Parte especial dos quilombolas guarda o Cerrado, segundo maior bioma brasileiro, que se espalha por 11 estados, ou 204 milhões de hectares (23% do território nacional). Ou a “última fronteira agrícola”, como rotulam os insaciáveis chefões do agronegócio, para provar que a devastação se alastra muito além da Amazônia. A monocultura causa a savanização que ameaça a região central, endereço de nossos maiores mananciais.


Sim, é na caixa d’água do Brasil que mora a parte mais dramática da luta fundiária. O Cerrado soma 91% da vegetação do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), epicentro da sanha devastadora, que ataca também centenas de territórios quilombolas, onde vigora o manejo virtuoso das riquezas naturais.


A verdadeira luta ambiental se encontrará na COP28 para conhecer boas iniciativas e discutir venenos e perigos. Não podemos cair na armadilha da falsa transição energética, que gera impactos tão grandes quanto o modelo hoje decadente.



Nordeste do Pará


Ótimo exemplo é a Guerra do Dendê, no nordeste do Pará, onde o plantio de dendezeiros para abastecer termelétricas com palma de óleo cresce, apesar do histórico da destruição, em processo semelhante, de florestas do Sudeste Asiático. Por aqui, sofrem a biodiversidade e os povos indígenas e quilombolas na Amazônia. Símbolo de energia limpa, as eólicas também impactam negativamente comunidades quilombolas no Nordeste.


Encaramos ainda o perigo decorrente da busca desmedida pelo lucro, que faz girar a espiral dos massacres de lideranças país afora. Denuncia a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) que, nos últimos cinco anos, houve 32 assassinatos do tipo em 11 estados de todas as regiões, incluindo, pela primeira vez, o Centro-Oeste, terra do Cerrado. A média anual de mortes dobrou e ao menos 13 quilombolas foram exterminados no contexto de conflitos fundiários.


Os números constam da segunda edição do levantamento “Racismo e violência contra quilombos no Brasil”, realizado em parceria com a ONG Terra de Direitos, e assusta pela comparação com o primeiro capítulo dessa odisseia sangrenta: de 2008 a 2017, registraram-se 38 homicídios.


Não melhorou em 2023 (que entrará somente na terceira edição), como provam as mortes de Mãe Bernadete, ialorixá e líder do quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), fuzilada com 25 tiros na sala de casa, em agosto; e de José Alberto Moreno Mendes, o Doka, presidente da Associação de Moradores do quilombo de Jaibara dos Rodrigues, em Itapecuru-Mirim (MA), morto também a tiros em outubro. Além deles, mais dois líderes quilombolas foram assassinados este ano. Os guardiões da floresta estão sob ataque mais uma vez.


Somos sobreviventes, e estaremos na reunião da aldeia ambiental, engajados no combate à emergência climática, para sublinhar nosso papel na proteção dos ecossistemas e na denúncia da violência impiedosa que nos cerca. Mais do que nunca, não há recuo possível.


O mundo precisa conhecer e adotar soluções sustentáveis que desenvolvemos em nossos territórios, a partir de saberes ancestrais. O respeito e a proteção aos territórios dos quilombolas brasileiros estão entre as agendas mais urgentes da crise. Atendê-la é para ontem, em nome da ampla morada dos humanos.


 

Sandra Braga, é liderança quilombola do Quilombo Mesquita, em Goiás, e coordenadora executiva da Conaq. Está participando da COP28, em Dubai.


As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil




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